Worldcoin: o que está por trás do projeto do criador do ChatGPT?

Worldcoin

Nos últimos meses, orbes brilhantes têm aparecido em diversas cidades ao redor do mundo, como Nova York, Tóquio e Belim. Mas podem ficar calmos: não estamos vivenciando nenhum roteiro apocalíptico de invasão alienígena típico de séries de Steven Spielberg. Na verdade, esses orbes funcionam como dispositivos revolucionários atrelados ao lançamento do Worldcoin, projeto que combina inteligência artificial com criptomoedas, idealizado pelo mesmo fundador do ChatGPT, Sam Altman.

De acordo com Altman, o objetivo dessas esferas é inaugurar uma nova era da humanidade global e de estabilidade financeira. Isso porque, na prática, o objetivo da startup é utilizar esses dispositivos para escanear os olhos das pessoas em troca de uma identificação digital e de potenciais criptomoedas, dependendo do país em que vivem.

Ou seja, podemos não estar próximos dos roteiros de Spielberg, mas definitivamente estamos cada vez mais próximos de episódios de Black Mirror, como o fatídico “Joan is awful” da última temporada, que fomentou inclusive a greve de atores de Hollywood na vida real.

Em outras palavras, Altman e o co-fundador da startup, Alex Blania, esperam que a Worldcoin forneça uma solução para a identidade online em meio a um cenário repleto de golpes, bots e diversos impostores, almejando inclusive atingir um cenário onde sejam capazes de “levar renda básica universal para seus usuários”.

Por outro lado, os críticos dessa inovação alegam que a iniciativa é invasiva, distópica e exploratória, coletando dados biométricos sensíveis e levantando preocupações sobre como esses dados serão armazenados e realmente utilizados por uma empresa privada centralizada, iniciativa que conflita com o ethos da Web 3.0. Não à toa, já vemos países se manifestando oficialmente contra a empreitada de Altman.

Um dia após o lançamento da Worldcoin no mercado, o órgão responsável pela regulação de dados do Reino Unido se manifestou dizendo que iriam investigar o projeto. Uniram-se à empreitada investigativa do Reino Unido, os órgãos reguladores da França e da Alemanha.

Já no último dia 2, o Quênia se tornou a primeira nação a suspender as atividades do Worldcoin, iniciando uma investigação sobre as práticas da startup e envolvendo várias agências locais.

Isso porque, no país do leste africano, além da identidade digital, alguns quenianos recebiam cerca de 7.000 xelins (o equivalente a US$ 49) em incentivos em dinheiro e tokens criptográficos, atraindo milhares de pessoas para os centros de rastreamento de íris e formando filas que chegaram a durar 3 dias. Ao todo, em todo o mundo, mais de 2,2 milhões de pessoas já se inscreveram no serviço.

Feita toda essa introdução, resolvemos preparar este texto com os principais pontos relativos a este projeto tão polêmico que tem estampado as capas de colunas e periódicos especializados em cripto.

 

Qual o objetivo do Worldcoin?

Além das dificuldades inerentes que já existem ao navegarmos na web, com a expansão da inteligência artificial, nossa capacidade de distinguir quem é realmente um ser humano no ambiente online de quem não é, está prestes a se tornar ainda mais difícil. Vale lembrar que, no início do ano, o ChatGPT-4 convenceu um ser humano a resolver um CAPTCHA em seu lugar.

Sob esse pretexto, Sam Altman e Alex Blania criaram a Worldcoin, servindo como uma solução potencial para o problema, como uma maneira de distinguir definitivamente os humanos das IAs no ambiente online a partir do escaneamento das íris dos indivíduos, o que reduziria os golpes e as fraudes drasticamente. Seria trágico se não fosse cômico vermos o nome por trás do maior expoente atual das inteligências artificiais se propondo a resolver um problema fomentado pelas inteligências artificiais.

O fato é que a técnica consiste na mesma dinâmica já realizada pelo Face ID da Apple, por exemplo. Após receber uma digitalização única da íris, o projeto emite uma identidade digital chamada de World ID, que não consiste nos dados biométricos do usuário de fato, mas sim em um identificador criado com um método de criptografia que utiliza “prova de conhecimento zero”, ou ZK Proofs, para quem já está familiarizado com o termo no ambiente crypto.

Assim, caso as World IDs venham a se popularizar, os usuários poderão utilizá-las para fazer login em todos os sites, da mesma forma que o Google oferece serviços de login únicos. A diferença, segundo Altman, é que o login da Worldcoin seria muito mais seguro e desconectado de outras informações como e-mail, foto, nome, etc. O lado realmente bom é que, em caso de pleno funcionamento da tecnologia de ZK Proof, o Worldcoin permitiria que o login dos detentores dos IDs em um site não fossem rastreáveis por outras pessoas e/ou governos.

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Por que as pessoas estão se cadastrando? Qual a ligação com criptomoedas?

O Worldcoin foi oficialmente lançado no mês passado. Altman postou um vídeo mostrando longas filas do lado de fora dos centros dessas orbes, e afirmou que o projeto estava registrando um novo usuário a cada oito segundos, surpreendendo as expectativas.

É claro que algumas dessas pessoas se inscreveram por curiosidade ou afinidade com a tecnologia, mas arriscaria dizer que a grande maioria se inscreveu principalmente pelo incentivo financeiro. Para estimular o interesse no projeto, o Worldcoin criou sua própria criptomoeda chamada WLD e ofereceu 25 unidades (atualmente valendo cerca de US$ 60) para quem escaneasse suas íris.

A criptomoeda do Worldcoin serve como uma estratégia de marketing, uma infraestrutura financeira global e uma maneira de atrair financiamento contínuo de capital de risco. Vale mencionar que a empresa por trás do Worldcoin, Tools for Humanity, arrecadou recentemente US$ 115 milhões em uma rodada de financiamento, sendo avaliada em US$ 3 bilhões no ano passado. Cerca de 14% de todos os tokens WLD foram destinados a investidores.

criptomoeda do Worldcoin

 

O fato é que o Worldcoin tem se envolvido com o ecossistema de criptomoeda por alguns anos, seja isso bom ou ruim, já que Altman afirma ter concebido a ideia desde 2019.

No entanto, foi anunciado publicamente no verão de 2021, quando as criptomoedas estavam em seu auge. O curioso é que os apoiadores originais do projeto incluem Sam Bankman-Fried, ex-CEO da FTX, acusado de perpetrar um golpe de US$ 8 bilhões, e o colapsado fundo de hedge de criptomoedas Three Arrows Capital.

 

Sam Altman e a ideia de renda básica universal:

Sam Altman, que sempre teve interesse pelo conceito de renda básica universal (UBI), diz que espera que o “elemento financeiro” do Worldcoin leve justamente a esse cenário para seus usuários. Quando era presidente do acelerador de startups Y Combinator, Altman liderou um projeto piloto que visava fornecer US$ 1.500 por mês para famílias em Oakland.

No entanto, o projeto foi significativamente adiado e progressivamente reduzido. Elizabeth Rhodes, diretora do projeto de pesquisa do YC, que era o braço sem fins lucrativos do acelerador e que desde então se tornou independente, disse à Wired em 2018 que “é mais difícil do que se imagina distribuir dinheiro”.

Além disso, o Worldcoin não é o primeiro projeto a vincular identidade digital à renda básica universal. No ano passado, um projeto chamado Proof of Humanity tentou algo semelhante, quando distribuía de US$ 50 a US$ 100 em criptomoedas mensalmente para todos que se inscrevessem. No entanto, o valor do token despencou juntamente com todo o mercado.

 

Santiago Siri, membro do conselho da Proof of Humanity, disse que os mecanismos criptográficos do Worldcoin destinados a proteger a identidade representam um avanço em relação ao seu projeto, que exigia que novos usuários publicassem um vídeo público para verificar suas identidades. Santiago espera que Altman use o Worldcoin e a receita crescente da OpenAI para redistribuir riqueza.

Na mentalidade de Santiago e de Altman, a inteligência artificial pode cumprir a promessa de distribuir riqueza em contrapartida à substituição de empregos que ela gerará, tendo uma obrigação ética de apoiar iniciativas nesse sentido.

No entanto, não existe almoço grátis, não é mesmo?

A forma como Altman planeja pagar pela UBI do Worldcoin ainda é incerta e pouco fundamentada. A esperança é que haja cada vez mais demanda pelo token justamente pela crença de que este é o futuro, fomentando seu valor de mercado e possibilitando a redistribuição. Ou seja, a ideia é que a dinâmica funcione quase como uma profecia autorealizável: quanto mais acreditemos nessa perspectiva, mais ela faz sentido em existir e vigorar, e mais ela é capaz de ser eficaz.

Críticas ao Worldcoin:

Há muitos críticos ao projeto considerando que o escaneamento dos olhos em troca de criptomoedas é um cenário distópico e exploratório. Assim, muitas pessoas estão compreensivelmente relutantes em entregar seus dados biométricos para uma startup privada com objetivos incertos, e até mesmo o próprio Altman reconheceu que há um “fator claro de estranheza”.

Na tentativa de dirimir as dúvidas, o Worldcoin afirma que as informações biométricas nas esferas são apagadas após serem processadas e convertidas em código criptográfico. No entanto, dado o histórico de empresas do Vale do Silício (vide Facebook) que “geriram mal” os dados de seus usuários, há uma grande pulga atrás da orelha das pessoas, e alguns temem que os escaneamentos de íris possam ser usados para vigilância ou até vendidos para terceiros.

“Não use biometria para nada”, escreveu Edward Snowden no Twitter em resposta à postagem de Altman sobre o Worldcoin em 2021. Para ver a thread completa de Snowden, clique aqui.

 

Um extenso artigo de 2022 da MIT Technology Review encontrou evidências de que o projeto usou práticas enganosas para cadastrar pessoas em países como Indonésia, Quênia e Chile. Por exemplo, falantes de espanhol receberam notificações de termos de serviço em inglês, e pessoas no Sudão foram atraídas com brindes de AirPods sem que soubessem exatamente para que estavam escaneando seus olhos.

Um representante da Worldcoin Foundation respondeu ao artigo da Technology Review em um comunicado à TIME, escrevendo:

“O artigo não representa as operações do projeto, inclui informações imprecisas e oferece uma perspectiva pessoal estreita dos estágios extremamente iniciais do projeto. Também não é uma representação precisa das operações globais do projeto atualmente.”

No entanto, este ano, hackers roubaram as credenciais de login dos operadores do Worldcoin encarregados de cadastrar novos usuários, permitindo que os hackers vissem informações internas. Um artigo da publicação de criptomoedas BlockBeats alegou que pessoas no Camboja e no Quênia estavam vendendo seus dados de íris por tão pouco quanto US$ 30 no mercado negro, na esperança de que o WLD aumentasse de valor.

 

Avaliação: por que você não deve escanear sua íris?

Do ponto de vista filosófico, estamos falando de uma criptomoeda oferecida às pessoas dispostas a compartilhar seus dados biométricos, escaneando seus olhos com uma esfera, buscando vincular a identidade do mundo real com a identidade descentralizada da blockchain. Ou seja, muitos aspectos do projeto representam justamente o pesadelo distópico que os cypherpunks que criaram o Bitcoin e outras criptomoedas buscaram evitar.

Já do ponto de vista de incentivos econômicos, a tokenomia do token WLD do Worldcoin é tal que apenas 1% do valor total está em circulação no momento, algo praticamente inédito até mesmo no caótico mundo das criptomoedas. Isso significa que, por default, o token não manterá seu valor por muito tempo, a não ser que o mundo inteiro se disponha a escanear seus olhos e participar do processo.

Ao contrário do Bitcoin ou Ethereum, que cresceram organicamente por meio da adoção e utilidade dos usuários, o projeto depende de uma total adesão, uma espécie de “tudo ou nada”. Ou ele é a única solução para identidade on-chain, ou provavelmente não terá valor.

Além disso, as alegações de que a privacidade e a biometria são protegidas pelo Worldcoin são afirmações ainda sem comprovação e que não podem ser confiáveis até que o Worldcoin e suas orbes se tornem livres e de código aberto (“open source”). Esse não é o método que vem sendo adotado no desenvolvimento de Altman e provavelmente ameaçaria a integridade da verificação de identidade das esferas.

Em contrapartida, precisamos ser justos:

Alguns dos principais especialistas em criptografia de provas de conhecimento zero estão trabalhando no projeto. Não duvidamos do compromisso deles ou de sua tecnologia, e reconhecemos a busca por soluções de identificação dentro desse ecossistema para construir uma identidade on-chain enquanto preserva-se a privacidade.

No entanto, ataques Sybil e spam já são um problema no ambiente das criptomoedas, podendo levar à manipulação do mercado. A revolução proporcionada pelas inteligências artificiais fomentadas pelo próprio Altman, impressionantes como são, tendem a piorar esse cenário, mas não acreditamos na Worldcoin, do mesmo Altman, como a resposta para o problema. É o famoso “criar” o problema para vender a solução.

Por fim, a startup nos diz para não nos preocuparmos porque o Worldcoin será descentralizado. Também nos disseram que a OpenAI era uma organização de pesquisa sem fins lucrativos, mas sabemos como essa promessa mudou quando o atrativo de US$ 10 bilhões da Microsoft apareceu.

E mesmo que o Worldcoin se descentralizasse amanhã, lembre-se de que o Worldcoin é construído na camada 2 da Optimism, que também não é lá bem descentralizada. Em suma, existem soluções mais simples para ataques Sybil e outros desafios de identidade, não compensando o saldo do risco-retorno.

Caio Goetze

Formado em Direito pela PUC-RJ e pós-graduando em Direito Digital pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) em parceria com a UERJ, conta com 3 anos de experiência e diversos cursos de formação acadêmica de bagagem no “criptomercado”.

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