Em uma cena do filme Dope, de 2015, jovens de um bairro da Califórnia com alto índice de criminalidade encontram maneiras de vender drogas e gerar lucros com bitcoin. No ano seguinte, em 2016, a série Startup retrata gangues criminosas que criam uma nova criptomoeda para lavagem de dinheiro, executando uma espécie de economia paralela clandestina que envolve drogas e armas em Miami.
Esses são apenas alguns dos muitos exemplos que costumam apresentar as criptomoedas e o bitcoin como meios escolhidos pelos criminosos para atividades ilícitas, dando a sensação de que esse ecossistema está tomado majoritariamente por ilegalidades e agentes mal-intencionados. Mas será que a ficção corresponde à realidade?
Já de início, adianto a vocês que essas representações foram altamente imprecisas e desinformadas, reminiscentes de filmes anteriores que retratavam falsamente o quão fácil era para os criminosos hackearem computadores e roubarem dinheiro à vontade, por exemplo.
Podemos citar, ainda, o próprio caso da série Startup, onde a suposta criptomoeda descentralizada usada pelas gangues criminosas é operada a partir de um único computador pertencente a um dos protagonistas. Ou seja, dinâmica nem um pouco fidedigna ao funcionamento de uma cripto descentralizada.
E o problema vai além. O mito da estreita associação das criptomoedas com lavagem de dinheiro existe até mesmo entre acadêmicos. Em 2022, David Rosenthal, conhecido por seu trabalho na Universidade de Stanford sobre preservação digital, fez uma apresentação onde rotulou cripto como “um desperdício de energia” e “cheia de crime”, reforçando a ideia de que o ambiente tem sido usado para crimes como roubo, fraude, evasão fiscal e financiamento de grupos ilícitos.
Mas nosso objetivo aqui não é personificar ou individualizar o problema. O fato é que esse tipo de argumento não considera que, em escala, o percentual dos crimes que acontecem com criptomoedas é, comparativamente, bem pequeno em relação às mesmas atividades criminosas que usam a moeda fiduciária como meio de operação.
De acordo com a empresa de análise Crystal Blockchain, no ano passado, globalmente, as empresas pagaram juntas “apenas” US$ 16 milhões em criptomoedas aos hackers para recuperar dados ou acessos roubados.
De acordo com a Chainalysis, no entanto, os pagamentos de resgate (“ransomware attacks”) em geral foram avaliados em mais de US$ 456,8 milhões. Dito de outra forma, os resgates em cripto significaram 27,55x menos do que aqueles feitos por outros meios.
Vale ressaltar também que a Chainalysis descobriu que, até o final de 2022, apenas 0,24% das transações de criptomoedas estavam envolvidas em atividades criminosas. Os patamares seguem baixos desde 2019 e esses estudos continuam a descobrir que a grande maioria do uso de criptomoedas é legítima.
Aumento dos números de crimes ligados à criptomoedas?
Por outro lado, sejamos justos: importante mencionar que a tendência de queda do crime no ecossistema crypto parou nos últimos meses, de acordo com a mesma Chainalysis em suas últimas descobertas detalhadas no Crypto Crime Report 2023.
Há dois contrapontos essenciais que devem ser levantados, no entanto. Muitos dos números de 2022 incluem uma grande parte dos valores mantidos por três grandes empresas do meio que entraram em colapso com alegações de fraudes: FTX, Celsius e Three Arrows Capital.
Além disso, as criptomoedas em si não foram as facilitadoras da fraude em nenhum dos três casos, pelo contrário. As investigações seguem acontecendo, mas os eventos só reforçaram a necessidade por um controle descentralizado a fim de evitar tais situações. O que vimos foi uma “má gestão de investimentos e ativos” e lideranças fraudulentas em todos os casos.
Outro fator-chave no aumento dos números de crimes relacionados à cripto foi o fato de a OFAC ter lançado um programa de sanções em 2022, capturando grandes alvos como a exchange russa Garantex, que por si só, responde por 43% do volume de transações ilícitas de 2022, atuando como uma das principais lavadoras de dinheiro para grupos hackers com base no país de Putin, ajudando a financiar atividades terroristas.
No entanto, é preciso observar que a quantia de US$ 100 milhões atribuída à lavagem de dinheiro da Garantex parece relativamente pequena em comparação com as centenas de bilhões de dólares que já foram comprovadamente lavados pelos agentes mais tradicionais.
De acordo com a Finexus, em 2022, houve um aumento de 50% nas multas por lavagem de dinheiro em escala global. No total, foram relatados cerca de 3.500 eventos de lavagem de dinheiro, resultando em multas de quase US$ 5 bilhões.
Em contrapartida, a ideia das blockchains e da indústria crypto em geral é que sejam transparentes, imutáveis e descentralizadas. Fazendo um “mea culpa”, é claro que ainda há um longo caminho para percorrer.
Na prática, apesar da transparência, a indústria ainda possui muitos players centralizados e embasados em normas das finanças tradicionais, aproveitando-se de um ambiente regulatório cinzento ainda não muito estabelecido.
Dentro desse contexto e aproveitando o tema da transparência, vale destacar que, em nossa avaliação, embora os números de 2022 possam à primeira vista parecer más notícias para a reputação do ecossistema crypto, essa acareação de informações só é possível justamente em função da existência de uma base de dados clara e democraticamente acessível proporcionada pelas blockchains, tornando o rastreio muito mais fácil quando comparado ao dinheiro físico e com os sistemas fechados usados pelas finanças e pelos bancos do mundo todo.
Essa transparência é incomparável a qualquer outro tipo de sistema monetário e expõe outro erro cometido por Rosenthal em sua avaliação do crime na indústria cripto, que é a crença de que um dos principais facilitadores desses crimes seria a perspectiva de anonimato. Vamos a esse ponto…
Criptomoedas facilitam a lavagem de dinheiro?
Se considerarmos uma criptomoeda simplesmente como uma moeda digital que usa criptografia para segurança e opera sem uma autoridade central, ou até mesmo além do âmbito de qualquer forma de autoridade reconhecida, certamente, por definição, parece uma boa ideia usá-la para atividades que você não quer que as autoridades vejam.
E com certeza foi exatamente isso que os primeiros criminosos digitais pensaram, já que o BTC era a moeda digital de escolha para negociações de drogas, armas e outros bens ilícitos usando um mercado da Dark Web chamado Silk Road. No entanto, há um equívoco constantemente cometido, que é confundir as transações privadas de crypto com transações anônimas, quando não são.
O que foi mal compreendido na época, e que promove efeitos na desinformação sobre o bitcoin até os dias de hoje, é que o Bitcoin preserva apenas algumas formas de privacidade para o usuário. Ou seja, ao contrário de qualquer outro tipo de dinheiro digital, qualquer pessoa poderia usar o Bitcoin sem registrar uma única informação pessoal (como nome, telefone, RG, e-mail, etc).
Nesse sentido, de fato os indivíduos podem permanecer anônimos ao não revelar seus nomes ou identidades ao transferir BTCs. No entanto, por outro lado, o Bitcoin registra todos os detalhes de cada transação de forma permanente e transparente em uma blockchain pública e auditável, acessível a qualquer momento. Ou seja: informações como “remetente”, “destinatário” e o “valor de cada transação” são anotados nessa base de dados, criando um registro imutável que rastreia cada unidade de bitcoin transferida.
Leia mais:
Como ocorre uma transação de bitcoin (BTC)?
Essa característica crucial de arquitetura significa que o ambiente crypto, na verdade, não te torna anônimo. Em vez disso, ele permite o uso “pseudônimo” do dinheiro, digamos assim, protegendo grande parte da privacidade da identificação pessoal, mas exigindo transparência completa da atividade de transação.
Já que mencionamos a Silk Road ainda a pouco, vamos utilizá-la de exemplo mais uma vez, tendo em vista que, de fato, ela só foi desvendada e interrompida em 2013 justamente por causa do uso do bitcoin.
Em resumo, os investigadores conseguiram acessar informações sobre o suposto dono revelando suas carteiras de bitcoin. Assim, usando informações simples de transações disponíveis em exploradores públicos de blockchain do Bitcoin, as agências de investigação conseguiram rastrear os culpados simplesmente ligando as carteiras conectadas pelas transações e combinando dados de localização, como endereços IP, vinculados a essas transações.
Ou seja, foi justamente a característica pública da blockchain que permitiu que o crime fosse punido. Esse método de investigação certamente não teria sido possível com outros tipos de moeda digital ou formas de valor onde os registros pudessem ser excluídos, falsificados ou até mesmo obscurecidos!